Proteção do Trabalho Marítimo
/O trabalho a bordo de navios de mar é regulamentado por importantes convenções internacionais. Persistem no entanto formas de incumprimento em algumas companhias, pelo que é fundamental que os marítimos conheçam os seus direitos.
Os navios não são todos iguais. Além da sua dimensão, existem muitos outros factores que os diferenciam. De uma forma simplificada e para efeitos do presente artigo, podemos considerar três tipos de embarcações:
(1) os navios de carga e os navios de passageiros (marinha de comércio);
(2) os navios ligados à indústria, nomeadamente da pesca; e
(3) os navios auxiliares (pesquisa, supply, etc.).
Em termos de proteção do trabalho marítimo, aos navios de carga, de passageiros e auxiliares aplica-se a Convenção MLC (Maritime Labour Convention). Relativamente às embarcações ligadas à actividade da pesca, aplica-se a Convenção ILO C188. Ambas são apresentadas de seguida, de forma detalhada.
Convenção do trabalho marítimo na marinha de comércio (MLC 2006)
A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (ILO International Labour Organization) adotou, em 7 de fevereiro de 2006, a Convenção do Trabalho Marítimo, 2006 (Maritime Labour Convention). O objetivo era claro: criar um instrumento único, com todas as normas atualizadas das convenções e recomendações internacionais existentes sobre trabalho marítimo, bem como princípios fundamentais de outras convenções internacionais sobre trabalho.
A Convenção MLC 2006 aplica-se a todos os navios pertencentes a entidades públicas ou privadas, habitualmente afetos a atividades comerciais, que efetuem viagens internacionais. Não inclui os navios afectos à pesca ou a atividade análoga e as embarcações de construção tradicional. Não se aplica a embarcações de tráfego local ou navegação exclusiva em águas interiores, nem a navios de guerra ou a unidades auxiliares da marinha de guerra (Artigo II ponto 4).
De acordo com esta convenção, marítimo designa "qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha, a qualquer título, a bordo de um navio ao qual se aplique a presente convenção." (Artigo II alínea f).
Para os efeitos desta convenção, navio designa “qualquer embarcação que não navegue exclusivamente em águas interiores ou em águas abrigadas ou nas suas imediações ou em zonas onde se aplique uma regulamentação portuária." (Artigo II alínea i).
A Convenção MLC 2006 está organizada em três partes principais: os artigos, que surgem em primeiro lugar, estabelecem os princípios e obrigações gerais. Seguem-se as regras e as disposições do código mais detalhadas (com duas partes, Parte A e Parte B). As regras e as normas (Parte A) e os princípios orientadores (Parte B) do código encontram-se estabelecidos em cinco títulos:
Título 1 - Condições mínimas a observar para o trabalho dos marítimos a bordo de um navio;
Título 2 - Condições de trabalho;
Título 3 - Alojamento, lazer, alimentação e serviço de mesa;
Título 4 - Proteção da saúde, cuidados médicos, bem-estar e proteção em matéria de segurança social;
Título 5 - Cumprimento e aplicação.
A Convenção MLC 2006 regula os requisitos da idade mínima, certificado médico, formação e qualificações para o trabalho a bordo de navios da marinha de comércio, condições de trabalho, tais como a celebração do contrato de trabalho, remunerações, serviços de recrutamento e colocação de marítimos, duração do trabalho ou do repouso, férias anuais, repatriamento, lotações de segurança, alojamento, instalações de lazer, alimentação e serviço de mesa, proteção da saúde e cuidados médicos, prevenção de acidentes, proteção em matéria de segurança social, queixas a bordo e pagamento de retribuições.
Regula ainda as obrigações dos Estados, enquanto Estado de bandeira ou Estado do porto, tendo em vista o cumprimento e o controlo da aplicação da MLC 2006 por parte dos navios que arvorem bandeiras de Estados que a ratificaram. As responsabilidades na qualidade de Estado de bandeira dos navios envolvem a instituição de um sistema de inspecção e de certificação com vista a assegurar que as condições de trabalho e de vida dos marítimos afetos a esses navios são conformes às normas da MLC 2006.
Todos os navios de arqueação bruta igual ou superior a 500 e que efetuem viagens internacionais, deverão possuir um certificado de trabalho marítimo, completado por uma declaração de conformidade do trabalho marítimo. Estes documentos atestam, salvo prova em contrário, que o navio foi devidamente inspeccionado pelo Estado da bandeira e que as prescrições da presente Convenção, relativas às condições de trabalho e de vida dos marítimos, foram cumpridas na medida certificada.
O sistema de certificação inclui o certificado de trabalho marítimo, completado pela declaração de conformidade do trabalho marítimo ou, em certos casos, um certificado provisório de trabalho marítimo, atestando que o navio foi inspecionado pelo Estado de bandeira e que as disposições obrigatórias da MLC 2006 relativas às condições de trabalho e de vida dos marítimos são cumpridas. As suas disposições, relativas às responsabilidades do Estado do porto, prevêem que qualquer navio que arvore a bandeira de outro Estado e que, no decurso normal da sua atividade, faça escala num porto ou fundeadouro nacionais pode ser inspecionado, para se verificar a conformidade das condições de trabalho e de vida dos respetivos marítimos com as disposições daquela convenção.
Portugal tornou público através do Aviso n.º 118/2016, em 12 de maio de 2016, que a República Portuguesa depositou o seu instrumento de ratificação da Convenção MLC 2006. Em cumprimento do n.º 4 do artigo VIII da Convenção, esta entrou em vigor para a República Portuguesa no dia 12 de maio de 2017 (12 meses após ratificação).
Apresenta-se de seguida o texto de três das suas mais importantes regras e respetivas normas, que mais suscitam dúvidas a quem trabalha a bordo de navios.
Regra 2.3 - Duração do trabalho ou do descanso
1. Para os efeitos da presente norma:
a) horas de trabalho designa o tempo durante o qual o marítimo está obrigado a efectuar um trabalho para o navio;
b) horas de descanso designa o tempo que não está incluído na duração do trabalho; esta expressão não inclui as interrupções de curta duração.
5. Os limites das horas de trabalho ou de descanso devem ser fixados da seguinte forma:
a) o número máximo de horas de trabalho não deve ultrapassar:
i) 14 horas em cada período de 24 horas;
ii) 72 horas em cada período de sete dias; ou
b) o número mínimo de horas de descanso não deve ser inferior a:
i) 10 horas em cada período de 24 horas;
ii) 77 horas em cada período de sete dias.
6. As horas de descanso não podem ser divididas em mais de dois períodos, devendo um destes períodos ter uma duração mínima de pelo menos seis horas, e o intervalo entre dois períodos consecutivos de descanso não deve ultrapassar 14 horas.
Regra 4.1 - Cuidados médicos a bordo dos navios e em terra
Objectivo: proteger a saúde dos marítimos e garantir-lhes um acesso rápido a cuidados médicos a bordo e em terra
1. Todos os Membros devem assegurar que todos os marítimos que trabalham a bordo de navios que arvoram a sua bandeira estejam abrangidos por medidas adequadas para a proteção da sua saúde e que tenham acesso a cuidados médicos rápidos e adequados durante todo o período de serviço a bordo.
2. A proteção e os cuidados referidos no parágrafo 1 da presente Regra devem, em princípio, ser assegurados gratuitamente aos marítimos.
3. Todos os Membros devem assegurar que os marítimos que trabalham a bordo de navios que se encontram no seu território tenham acesso às suas instalações médicas em terra, em caso de necessidade de cuidados médicos imediatos.
4. As disposições estabelecidas no código relativas à proteção da saúde e aos cuidados médicos a bordo incluem normas relativas a medidas com vista a assegurar
aos marítimos uma protecção da saúde e cuidados médicos tão idênticos quanto possível aos que, em geral, beneficiam os trabalhadores de terra.
Norma A4.1 - Cuidados médicos a bordo dos navios e em terra
1. Para proteger a saúde dos marítimos que trabalham a bordo de um navio que arvora a sua bandeira, e para lhes assegurar cuidados médicos que incluam os cuidados dentários essenciais, todos os Membros devem assegurar que sejam adoptadas medidas que:
a) garantam a aplicação aos marítimos de todas as disposições gerais relativas à protecção da saúde no trabalho e cuidados médicos relacionados com o seu serviço, bem como todas as disposições especiais específicas do trabalho a bordo de um navio;
b) garantam aos marítimos uma protecção da saúde e cuidados médicos tão idênticos quanto possível aos que, em geral, beneficiam os trabalhadores de terra, incluindo um acesso rápido aos medicamentos, equipamento médico e serviços de diagnóstico e de tratamento necessários, bem como a informação e conhecimentos médicos;
c) concedam aos marítimos o direito de consultar sem demora um médico ou um dentista qualificado nos portos de escala, sempre que possível;
d) garantam que, de acordo com a legislação e a prática do Membro, os serviços de cuidados médicos e de protecção da saúde sejam prestados sem custos aos marítimos a bordo ou desembarcados num porto estrangeiro; e
e) não se limitem ao tratamento de marítimos doentes ou feridos, mas incluam igualmente medidas de carácter preventivo, nomeadamente a elaboração de programas de promoção da saúde e de educação sanitária.
2. A autoridade competente deve adoptar um modelo-tipo de relatório médico para uso dos comandantes e do pessoal médico competente, em terra e a bordo. Este relatório tem carácter confidencial e serve exclusivamente para facilitar o tratamento dos marítimos.
3. Todos os Membros devem adoptar uma legislação que estabeleça, relativamente aos cuidados médicos e hospitalares a bordo dos navios que arvoram a sua bandeira, prescrições relativas às instalações, equipamento e formação.
4. A legislação nacional deve exigir, no mínimo, o cumprimento das seguintes prescrições:
a) todos os navios devem dispor de uma farmácia de bordo, material médico e um guia médico, cujas características específicas devem ser estabelecidas pela autoridade competente e inspeccionadas regularmente por esta. As prescrições nacionais devem ter em conta o tipo de navio, o número de pessoas a bordo, a natureza, o destino e a duração das viagens, bem como normas médicas recomendadas no plano nacional e internacional;
b) todos os navios que transportem 100 pessoas ou mais e efectuem habitualmente viagens internacionais com duração superior a três dias devem dispor de um médico qualificado responsável pelos cuidados médicos. A legislação nacional deve determinar também quais os outros navios que devem dispor de um médico a bordo, tendo em consideração factores como a duração, a natureza e as condições da viagem e o número de marítimos a bordo;
c) os navios que não disponham de um médico a bordo, devem contar com, pelo menos, um marítimo responsável pelos cuidados médicos e administração dos medicamentos, no âmbito das suas funções normais, ou um marítimo apto a prestar os primeiros socorros. Os marítimos responsáveis pelos cuidados médicos a bordo e que não sejam médicos devem ter concluído um curso de formação sobre cuidados médicos que cumpra com as disposições da Convenção Internacional sobre Normas de Formação, de Certificação e de Serviço de Quartos para os Marítimos, emendada (STCW). Os marítimos responsáveis pela prestação de primeiros socorros devem ter concluído um curso de formação sobre primeiros socorros, de acordo com as disposições da STCW. A legislação nacional deve determinar o nível de formação exigido, tendo em conta nomeadamente factores como a duração, a natureza e as condições das viagens e o número de marítimos a bordo; e
d) a autoridade competente deve assegurar, através de um sistema previamente estabelecido, a possibilidade da realização de consultas médicas por rádio ou satélite, incluindo conselhos de especialistas, 24 horas por dia. Estas consultas médicas, incluindo a transmissão por rádio ou satélite de mensagens médicas entre um navio e as pessoas em terra que dão o aconselhamento, devem ser asseguradas gratuitamente a todos os navios, independentemente da sua bandeira.
Regra 5.1.5 – Procedimentos de queixa a bordo
1. Todos os Membros devem exigir a existência a bordo dos navios que arvoram a sua bandeira de procedimentos que permitam um tratamento justo, eficaz e célere de quaisquer queixas apresentadas por um marítimo alegando uma infracção às prescrições da presente Convenção, incluindo os direitos dos marítimos.
2. Todos os Membros devem proibir e sancionar qualquer forma de represálias a um marítimo que tenha apresentado uma queixa.
3. As disposições da presente regra e correspondentes secções do código são aplicáveis sem prejuízo do direito do marítimo de procurar ser ressarcido por qualquer meio legal que lhe pareça adequado.
Norma A5.1.5 – Procedimentos de queixa a bordo
1. Sem prejuízo de um âmbito mais vasto eventualmente conferido pela legislação ou por convenções colectivas nacionais, os marítimos poderão recorrer aos procedimentos a bordo para apresentar uma queixa sobre qualquer questão que constitua, no seu entender, uma infracção às prescrições da presente Convenção, incluindo os direitos dos marítimos.
2. Todos os Membros devem assegurar que a legislação preveja o estabelecimento de procedimentos apropriados de queixa a bordo, com vista a cumprir as prescrições da Regra 5.1.5. Estes procedimentos devem procurar resolver, ao nível mais baixo possível, o litígio que está na origem da queixa. Contudo, em qualquer caso, os marítimos devem ter o direito de apresentar a queixa directamente ao comandante e, se considerarem necessário, junto das autoridades externas adequadas.
3. Os procedimentos de queixa a bordo devem incluir o direito dos marítimos a serem acompanhados ou representados durante o procedimento de queixa assim como garantias contra a possibilidade de represálias a marítimos que tenham apresentado uma queixa. O termo “represália” designa qualquer acto hostil, executado por qualquer pessoa, contra um marítimo que tenha apresentado uma queixa que não seja manifestamente abusiva nem caluniosa.
4. Todos os marítimos têm o direito a receber, além de um exemplar do seu contrato de trabalho marítimo, um documento que descreva os procedimentos de queixa em vigor a bordo do navio. O documento deve mencionar, designadamente, os contactos da autoridade competente no Estado da bandeira e, se estes forem diferentes, no país de residência dos marítimos, bem como o nome de uma ou mais pessoas que se encontrem a bordo que sejam susceptíveis de, a título confidencial, aconselhá-los de forma imparcial quanto à sua queixa e de os ajudar de qualquer outra forma a efectivar o procedimento de queixa de que podem dispor enquanto estiverem a bordo.
Convenção do trabalho marítimo na indústria da pesca (ILO 188)
A Convenção MLC 2006 excluiu o sector das pescas do seu âmbito de aplicação. Para este sector, que inclui cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, a ILO (International Labour Organization) adotou, em 14 de junho de 2007, a Convenção sobre o Trabalho no Sector das Pescas (Convenção n.º 188 da ILO) , tendo a mesma entrado em vigor em 16 de novembro de 2017, após ratificação por 10 países.
Esta convenção aplica-se a todos os pescadores e a todos os navios de pesca envolvidos em operações de pesca comercial, tendo como objetivo criar um instrumento único e coerente para completar as normas internacionais em matéria de condições de vida e de trabalho no sector. Integra normas revistas e atualizadas de convenções e recomendações internacionais aplicáveis aos pescadores, bem como os princípios fundamentais consagrados noutras convenções internacionais do trabalho.
Importa sublinhar que, como disposto no Artigo 1 da Convenção C188:
“(e) pescador significa toda pessoa empregada ou engajada a qualquer título que seja ou exercendo uma atividade profissional a bordo de uma embarcação de pesca, incluindo pessoas que trabalham a bordo e que são remuneradas com base em participação da captura mas exclui pilotos, pessoal naval, outras pessoas a serviço permanente de um governo, pessoas baseadas em terra encarregadas de realizar trabalhos a bordo de uma embarcação de pesca e observadores de peixes;”
Portugal não ratificou ainda esta importante convenção.
CONCLUSÕES
Qualidade das companhias de navios
Nem todas as companhias de navios são iguais, e nem todas cumprem voluntariamente e integralmente as convenções e normas internacionais, optando por caminhos pouco transparentes. Muitas companhias são ainda geridas com foco máximo no lucro, e mínimo nas pessoas que trabalham nos seus navios. Nestes casos, o seu melhor amigo é o conhecimento dos seus direitos e da regulamentação.
Qualidade e seriedade das empresas de recrutamento
Certas companhias de recrutamento marítimo com poucos escrúpulos, continuam a trabalhar com companhias de qualidade duvidosa, mantendo as suas fontes de receita e não informando devidamente os candidatos a emprego.
Outras ainda, aconselham os candidatos a colocar informação falsa nos currículos, antes de os enviarem para as companhias, para aumentar o potencial de contratação. As consequências são sempre graves para o trabalhador marítimo, que se torna cúmplice da falsidade. Afinal é ele que vai trabalhar no navio, integrado numa equipa que espera que possua as competências adequadas. Quando tal não se verifica, tudo corre mal e a culpa não é da companhia ou do navio - é do trabalhador e do recrutador.
Relativamente a si
Seja franco e frontal. Se não tem as competências certas, adquira-as antes de entrar num navio - não faltam boas escolas em Portugal. E, se possível, adquira experiência real de trabalho na área pretendida, em atividades equivalentes em terra. Quanto maiores as competências, mais respeito obterá e melhor será a sua integração nas equipas. E mais autoridade terá para defender os seus direitos, caso estes venham a ser ameaçados.
Relativamente às companhias de navios
Informe-se bem antes de assinar um contrato de trabalho. O mar pode ser um paraíso para viver e trabalhar, se escolher uma boa companhia e/ou um bom navio. Pode também ser o oposto, dependendo da qualidade da política de recursos humanos da companhia, e das competências sociais das pessoas com quem vai lidar a bordo.
LIGAÇÕES IMPORTANTES
Convenção do Trabalho Marítimo na marinha de comércio - MLC 2006
Ratificações da Convenção MLC 2006