Formação e ficção marítima em Portugal

Portugal está paralisado na formação de marítimos
As instituições de ensino e formação de marítimos em Portugal estão envelhecidas e atrasadas, carecendo de visão e ambição. E a regulamentação em vigor para o emprego marítimo é obsoleta.

Entrevista publicada no Jornal Economia do Mar, edição especial de Junho 2019.

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Álvaro Sardinha, fundador da Apormar — Agência Portuguesa de Marítimos, defende a necessidade de uma mais ampla comunicação das carreiras marítimas, de modo a permitir não apenas melhor informação mas, acima de tudo, promover e despertar novas vocações, num sector que considera vital para Portugal.

Não deixa de alertar, porém, para a igual necessidade de modernizar as metodologias e ensino, de forma a tornar possível captar também uma mais ampla gama de novos alunos, uma vez considerar encontrarem-se as actuais instituições de ensino e formação de marítimos em Portugal, envelhecidas e atrasadas, carecendo de visão e ambição, para além da regulamentação em vigor para o emprego marítimo estar já obsoleta.

Jornal da Economia do Mar: Antes de avançarmos sobre uma conversa sobre a formação de marítimos, pode esclarecer-nos sobre quem são, tecnicamente, esses profissionais e contextualizar o mercado em que se inserem?

Álvaro Sardinha: Segundo dados da UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), em 2018, a indústria de transporte marítimo internacional operava, no total, 94.169 navios com porte bruto superior a 100 toneladas (deadweight tonnage, ou dwt). Nesta contabilização estão incluídos navios de carga e de transporte de passageiros, incluindo ferries e cruzeiros.

A bordo de todos estes navios trabalham várias categorias de profissionais, todos classificados como marítimos. Importa explicitar que são consideradas marítimos, todas as pessoas que trabalham a bordo de navios, nas áreas técnicas e também em hotelaria e turismo. Efectivamente, de acordo com a MLC 2006 (Convenção do Trabalho Marítimo), qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha, a qualquer título, a bordo de um navio ao qual se aplique a convenção, é considerada marítimo. Em Portugal, a Lei n.º 146/2015, que regula a actividade de marítimos a bordo de navios que arvoram bandeira portuguesa, estabelece o mesmo.

O número de navios de transporte de carga em todo o mundo não tem apresentado um crescimento notável. Porém, o número de navios de cruzeiros internacionais não tem parado de crescer, a uma taxa anual de quase 8%. Segundo dados da Cruise industry News, até 2027 estão encomendados 124 navios oceânicos, mais de 40 dos quais são de luxo. Durante 2019 serão lançados um total de 24 novos navios de cruzeiros, um número nunca antes registado nesta indústria. De realçar que estes números não incluem navios de cruzeiros em rio, sector que se encontra igualmente em crescimento. O desenvolvimento do mercado está assim assegurado, tal como a procura de novos tripulantes.

Existem oportunidades de emprego a bordo de navios?

A indústria de navios de cruzeiros oceânicos emprega actualmente cerca de 250 mil pessoas em todo o mundo (áreas técnicas e de hotelaria/turismo). Estes números não incluem os navios de cruzeiros em rios. Para fazer face ao crescimento previsto, a indústria de cruzeiros precisa de 80 mil novos colaboradores em cada ano: 70 mil novos tripulantes anualmente para substituir o pessoal que se aposenta ou que transita para outras actividades e 10 mil novos tripulantes para equipar novos navios.

Falando agora dos navios comerciais, que incluem os de passageiros e de mercadorias, relativamente às carreiras técnicas nas áreas de máquinas e de convés, segundo os números publicados em 2015 pela ICS (International Chamber of Shipping), e suportados pela BIMCO (Baltic and International Maritime Council), estima-se que os recursos humanos que serviam nesses navios, atingia o total de 1.647.500 marítimos, incluindo 774 mil oficiais e 873.500 não oficiais (mestrança e marinhagem). De acordo com esta instituição (ICS), as perspectivas futuras indicam que a indústria do transporte marítimo não deve esperar que exista um abundante fornecimento de marítimos qualificados e competentes, se não forem realizados esforços concertados e implementadas medidas para abordar questões-chave relativas aos recursos humanos, através da promoção de carreiras no mar, e da melhoria do ensino e formação marítima em todo o mundo.

Num relatório publicado em maio de 2016, intitulado Manpower Report, as principais conclusões destacam a necessidade de 147.500 oficiais até 2025 para dar resposta às necessidades de recursos humanos da frota comercial mundial.

Segundo um relatório estatístico publicado em 2018 pela EMSA (Agência Europeia de Segurança Marítima), com dados de 2016 relativos às carreiras de oficiais europeus (máquina e convés), foram contabilizados 183.574 oficiais com certificados de competência válidos, dos quais cerca de 2% são mulheres. O Reino Unido lidera a lista, com 24.375 oficiais, seguido da Polónia e da Grécia, respectivamente, com 19.518 e 17.048 oficiais. Portugal contabiliza 786 oficiais.

Como caracteriza o ensino e formação marítima em Portugal?

O mundo em que vivemos encontra-se em profunda transformação, num processo disruptivo que torna obsoletas ideias e factos, de forma acelerada e globalizada. A indústria do transporte marítimo não escapa a este turbilhão, encontrando-se em forte transformação tecnológica e exigindo a disponibilidade de recursos humanos cada vez mais qualificados.

Sendo esta indústria um sector verdadeiramente internacional e global, qualquer país pode exportar serviços, incluindo a formação e a oferta de profissionais marítimos. Neste sector não se formam pessoas para as necessidades internas do país. Formam-se profissionais para trabalhar no mundo inteiro, gerando poupança e riqueza para os países de origem.

Como apresentado previamente, a indústria do transporte marítimo precisa de muitas pessoas para trabalhar em navios. Muitas companhias oferecem carreiras gratificantes, bem remuneradas e com vários outros benefícios, que não se encontram em carreiras profissionais em terra. Poderão os portugueses aproveitar esta oportunidade?

Para que tal seja possível é preciso ter em conta dois factores: o ensino e formação, e a regulamentação vigente.

Do ponto de vista do ensino e formação, Portugal está praticamente paralisado. As instituições de ensino e os centros de formação que qualificam marítimos padecem de vários males. O primeiro e mais grave assenta na falta de visão e ambição das instituições. Depois destaca-se a ausência de comunicação dos programas de ensino e formação marítima e das suas potenciais oportunidades de emprego, à comunidade em geral. E, finalmente, as estruturas envelhecidas e tecnologicamente atrasadas e a inércia imposta pelo peso da origem e identidade pública.

Os resultados estão à vista: falta de atractividade para captação de novos estudantes; falta de capacidade e de calendários de formação para dar resposta à procura; regulamentação desenquadrada do actual e digital do século XXI; equipamentos técnicos, pedagógicos e metodologias de ensino do século XX; ausência de formação em competências sociais (soft skills); deficiente apoio na colocação e desenvolvimento de carreira profissional dos alunos; em suma, deficiente serviço ao cliente e potencial cliente (o aluno e a comunidade).

Estudos comprovam que as instituições de ensino e de formação que obtêm melhores resultados, focam-se no Retorno do Investimento do Aluno (ROI), e não meramente no pagamento de custos de estrutura. Para isso têm de integrar novos conteúdos, ferramentas e tecnologias de ensino modernas, e construir competências de acordo com as necessidades reais da indústria, preparando os alunos para competir no mercado de emprego. Desta forma, os alunos poderão recuperar o investimento que fizeram em tempo e dinheiro.

Do ponto de vista da regulamentação vigente, a situação complica-se ainda mais. Começando pelo regulamento de inscrição marítima (RIM), completamente obsoleto e que obriga milhares de portugueses a trabalharem com cédulas marítimas de outros países. Depois, a nível da mestrança e marinhagem, pela ausência de ensino de inglês de forma consistente e pela carga horária excessiva, nomeadamente em formação STCW. É também a regulamentação e burocracia que aniquila a inovação e a agilidade. Estarão as instituições condenadas? Será possível a sobrevivência num mundo dinâmico e acelerado como o que vivemos? Enquanto não obtemos respostas, são já muitos os portugueses a procurar e a encontrar boa formação no Reino Unido e em Espanha. Algumas instituições de formação, nacionais e internacionais, estão também a avaliar a entrada no mercado nacional, o que poderá transformar radicalmente o sector.

Como se podem captar mais alunos para o ensino e formação marítima?

O sector marítimo oferece vastas oportunidades de desenvolvimento de carreiras profissionais desafiantes e gratificantes. Muitos portugueses, jovens e menos jovens, estariam interessados em saber mais sobre este mundo, mas infelizmente e para muitos, o mar ainda é terra dos segredos. Sem marketing e comunicação do mar e das carreiras marítimas, tal como acontece actualmente, não será potenciada a construção de vocações e a captação de novos alunos.

A identificação de uma vocação numa fase precoce da vida, pouparia muitas dores de cabeça e recursos financeiros, às pessoas, famílias e países. Sem vocação identificada nos alunos, o ensino perde eficácia e eficiência.

A procura da vocação de cada um deve ser uma tarefa interminável e prioritária, a iniciar bem cedo na vida de cada um. Nurturing é a palavra chave, que se traduz por sensibilização, estímulo, educação, informação, esclarecimento, formação, inspiração, motivação, promoção, valorização e desenvolvimento.

Também a IMO (Organização Marítima Internacional) tem desenvolvido um trabalho meritório no campo da promoção das carreiras marítimas junto de jovens, através da sua iniciativa de nomeação de Maritime Ambassadors. Estes são encorajados a partilhar a sua paixão pelo mundo marítimo com os outros, em particular os jovens que estão a iniciar a sua educação, aprendizagem ou em vias de início de carreira, convidando-os a considerar carreiras no mar. O objectivo é alcançar novos públicos-alvo e inspirar uma nova geração de especialistas marítimos. Espanha tem já um super embaixador marítimo IMO. Em Portugal o tema aparenta ser tabu.

Quais são as tendências da formação marítima a nível global?

Numa sociedade em mudança com as gerações Millenium, Z e Alpha, muito diferentes das gerações tradicionalistas, os métodos de ensino e de formação precisam de uma revolução.

Os conceitos Gamification e Design Thinking são já obrigatórios como metodologias de ensino e de formação, para as novas gerações que precisam de criatividade e de uma abordagem colaborativa para sobreviver no mercado de trabalho futuro.

Gamification é uma técnica que usa jogos em situações que não são brincadeira. Significa usar elementos dos jogos de forma a envolver pessoas para atingir um objectivo. Na educação o seu potencial é imenso, dado que desperta o interesse, aumenta a participação, desenvolve criatividade e autonomia, promove o diálogo, e ajuda a resolver situações-problema. Design Thinking é uma abordagem que busca a solução de problemas de forma colectiva e colaborativa, numa perspectiva de empatia máxima.

O ensino do futuro mistura espaços físicos com espaços virtuais, exigindo novas ferramentas tecnológicas e novos professores, preparados para novas formas de comunicação.

Por outro lado, para dominar novas competências na era da automação e digitalização, é preciso aceitar que a aprendizagem é um processo para toda a vida. É preciso apostar na formação de adultos – a quarta revolução industrial é a economia do conhecimento, da aprendizagem contínua. Estarão as instituições de ensino e formação conscientes? Uma escola nova tem de ser pensada e construída. No domínio do ensino marítimo em Portugal, quem o fará?

O que procuram as companhias de navios?

As companhias de navios atravessam uma fase complexa, com uma procura de recursos humanos qualificados superior à oferta. Se não for invertida a situação, em breve poderemos chegar a situações extremas, tal como já foi previsto por várias organizações internacionais.

A Apormar, como entidade que serve a comunidade que trabalha e que quer trabalhar em navios, promovendo o emprego e o desenvolvimento de carreira, tem desenvolvido iniciativas junto de companhias de navios nacionais e internacionais, identificando necessidades específicas destas em termos de recursos humanos. Uma das suas iniciativas de divulgação das oportunidades de carreiras marítimas e de promoção de emprego a bordo de navios – a Feira de Emprego & Carreiras Trabalhar num Navio – tem inspirado e motivado milhares de portugueses, com resultados objectivos e mensuráveis no encontro de vocações e na criação de emprego. Foram já criadas centenas de postos de trabalho a partir deste evento.

Infelizmente esta iniciativa não tem mobilizado a comunidade marítima nacional que, salvo louváveis excepções das companhias DouroAzul, Mystic Cruises e Grupo ETE, persiste em manter-se anónima e com reduzida visibilidade.

A adesão das companhias internacionais é cada vez mais forte e mais empresas não participam porque afirmam que Portugal não tem quantidade de marítimos, das áreas de máquinas e convés, suficiente para as suas necessidades. De facto, cerca de 90% dos visitantes profissionais têm competências nas áreas de hotelaria e turismo. Apenas 10% dos visitantes procuram oportunidades nas áreas técnicas, revelando que Portugal é altamente deficitário no ensino e formação neste sector profissional.

Apontam ainda outra razão para perderem o interesse por Portugal: os cursos STCW realizados no nosso país são caros, demasiado longos, não competitivos e desenquadrados das práticas internacionais e das necessidades reais das companhias, não existindo planeamento nem oferta suficiente para a procura. Muitas destas companhias seleccionaram portugueses, que acabam por não contratar porque estes não conseguem realizar a formação STCW.

Formar marítimos não é um processo barato em Portugal (a formação de um oficial da marinha mercante pode custar ao país cerca de 60 a 70 mil euros). Mas não formar terá um custo ainda mais elevado, travando a inovação, o crescimento empresarial e a criação de emprego. E não permitindo a concretização do desígnio Mar-Portugal, preconizado na Estratégia Nacional para o Mar 2013-2020.