A tragédia da cédula marítima

Todas as mulheres e homens que trabalham a bordo de navios são considerados marítimos (seafarers). Todos possuem iguais direitos de acordo com a regulamentação internacional, nomeadamente a Convenção do Trabalho Marítimo (MLC 2006), ratificada por Portugal em 12 de maio de 2016. Infelizmente, fruto da desatualização da legislação nacional, nomeadamente do Regulamento de Inscrição Marítima, os portugueses que trabalham a bordo de navios não possuem iguais direitos entre si, nem comparativamente aos marítimos de outros países.

A maior lacuna, que afeta milhares de portugueses, consiste no facto de muitos deles não poderem realizar a sua Inscrição Marítima, logo não tendo acesso à respetiva Cédula. Não podem, por esta razão, usufruir dos benefícios estabelecidos na lei em vigor, entre outros. 


Classificação de Marítimos
A falta de acesso à Inscrição Marítima por parte de muitos profissionais portugueses, que trabalham ou que pretendem trabalhar em navios, tem origem na classificação de marítimos preconizada na lei portuguesa. Assim, segundo o decreto-lei n.º 280/2001 (Anexo III – Capítulo II – artigos números 4, 5, 6, 7 e 8) e de acordo com posteriores alterações, apenas podem realizar a Inscrição Marítima os profissionais com as seguintes categorias:
Escalão dos oficiais:
. Capitão da marinha mercante;
. Piloto de 1ª classe;
. Piloto de 2ª classe;
. Praticante de piloto;
. Maquinista-chefe;
. Maquinista de 1ª classe;
. Maquinista de 2ª classe;
. Praticante de maquinista;
. Radiotécnico-chefe;
. Radiotécnico de 1ª classe;
. Radiotécnico de 2ª classe;
Escalão da mestrança
. Mestre costeiro;
. Contramestre;
. Mestre do largo pescador;
. Mestre costeiro pescador;
. Contramestre-pescador;
. Arrais de pesca;
. Arrais de pesca local;
. Mestre do tráfego local;
. Operador de gruas flutuantes;
. Maquinista prático de 1ª classe;
. Maquinista prático de 2ª classe;
. Maquinista prático de 3ª classe;
. Eletricista;
. Mecânico de bordo;
. Radiotelegrafista prático da classe A;
. Cozinheiro.
Escalão da marinhagem
. Marinheiro de 1ª classe;
. Marinheiro de 2ª classe;
. Marinheiro-pescador;
. Pescador;
. Marinheiro do tráfego local;
. Marinheiro de 2ª classe do tráfego local;
. Marinheiro-maquinista;
. Ajudante de maquinista;
. Empregado de câmaras;
. Ajudante de cozinheiro.

De todas as categorias apresentadas, apenas três estão relacionadas com a indústria de hotelaria e restauração. Nenhuma com as áreas da saúde, entretenimento ou turismo. O que significa que um médico, enfermeiro, músico, diretor de hotel, rececionista, etc. podem trabalhar em navios, mas não podem concretizar a Inscrição Marítima em Portugal, não tendo assim acesso à referida Cédula. E, claro, perdendo os benefícios disponíveis para outros marítimos, que trabalham nos mesmos navios.


A importância da Cédula de Inscrição Marítima
Os marítimos que possuem uma Cédula de Inscrição Marítima beneficiam de, pelo menos, quatro enormes vantagens sobre aqueles que não a conseguem obter:
- Acesso à pensão de velhice (reforma) aos 55 anos, sem antecipação ou penalização, cumpridos os requisitos em termos de tempo de serviço;
- Visto automático para entrada em países nos quais o passaporte não é documento suficiente;
- Possibilidade de transportarem dois volumes de carga (ao invés de um), em muitas das companhias aéreas, sem encargos adicionais;
- Prioridade de acesso ao sistema nacional de saúde, dada as limitações da assistência médica a bordo dos navios e a extensão dos períodos de permanência no mar.

O tema da reforma merece análise mais detalhada. Enquanto os trabalhadores portugueses em geral, apenas podem ter acesso à pensão de velhice sem antecipação e penalização, a partir dos 66 anos, os trabalhadores inscritos marítimos beneficiam de uma importante redução deste limite, de acordo com a portaria 804/77, atualmente em vigor: “É reconhecido aos trabalhadores inscritos marítimos da marinha de comércio de longo curso, de cabotagem, costeira e de pesca que sejam beneficiários das caixas sindicais de previdência, exceto os profissionais de pescas, o direito à pensão de velhice a partir dos 55 anos de idade, desde que, durante pelo menos quinze anos, seguidos ou interpolados, tenham pertencido aos quadros de mar. Para efeitos do disposto nesta portaria, considera-se que cada grupo de duzentos e setenta e três dias no «quadro de mar» corresponde a um ano de efetivo serviço.”

O tema de acesso dos marítimos com Cédula, a países para os quais a posse de passaporte não é condição suficiente, é sustentado pela Convenção (C.108) sobre os Documentos de Identificação de Marítimos, 1958, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta Convenção foi ratificada por Portugal em 19 de maio de 1967, através do decreto-lei n.º 47712, aplicando-se a todos os marítimos matriculados, seja a que título for, a bordo de qualquer navio que não seja navio de guerra, registado em território no qual esta Convenção esteja em vigor, e normalmente afeto à navegação marítima. 

O seu artigo 6º resume: “Todo o Estado Membro autorizará a entrada em território em que esteja em vigor a presente Convenção a qualquer marítimo possuidor de um documento de identificação de marítimo com validade, desde que essa entrada seja pedida para uma licença em terra de duração temporária, durante a escala do navio. O presente artigo não deverá em nada ser interpretado como restrição ao direito de todo o Estado Membro de impedir a entrada ou a permanência de qualquer indivíduo no seu território.”

Também de acordo com o decreto-lei n.º 280/2001 (anexo I - secção II – artigo 9º):
“A cédula pode constituir documento de identificação do marítimo, para efeitos da Convenção nº 108 da Organização Internacional do Trabalho, relativa aos documentos de identificação dos marítimos, 1958, desde que o seu titular o requeira ao presidente do IMP.”
Em conclusão, um marítimo que possua Cédula pode, nas escalas do navio em que trabalha, desembarcar e visitar portos e cidades, por exemplo, da Rússia e da China. Um marítimo que apenas possua passaporte não tem autorização para o fazer, ficando “preso no navio”.

A categoria marítima do empregado de câmaras
O empregado de câmaras, profissional da indústria de hotelaria e de restauração, está, como observado previamente, incluído nas categorias dos marítimos que podem ter acesso à Inscrição Marítima e, logo, à respetiva Cédula. Mas quem é, e o que faz um empregado de câmaras? 
Os empregados de câmara (taifeiros no Brasil) executam as funções necessárias à higiene e arrumação de camarotes, salas, paióis onde se armazenam as provisões, frigoríficos e outras instalações ligadas ao serviço de câmaras. No âmbito das suas funções, compete-lhes limpar e arrumar os camarotes e as salas, preparar as mesas, servir refeições, lavar e limpar o material utilizado, preparar e servir bebidas nos bares e salões da embarcação, assegurar o serviço de cafetaria e cuidar da arrumação, conservação e distribuição dos géneros alimentícios. O acesso à categoria de empregado de câmara da marinha mercante implica, normalmente, a conclusão de um curso profissional de empregado de mesa ou similar de hotelaria. 

O empregado de câmaras pertence à secção de câmaras, um dos departamentos em que se organiza a tripulação e o serviço de bordo de uma embarcação da marinha mercante. A secção de câmaras pode ter funções mais ou menos amplas, conforme a dimensão e o tipo de navio. Por exemplo, numa embarcação de carga pode limitar-se às funções de alimentação e arrumação dos espaços da tripulação. Numa grande embarcação de passageiros, além da alimentação, a secção de câmaras está encarregue da administração, gestão financeira, abastecimento e serviços gerais dos tripulantes e passageiros. Hoje em dia, sobretudo nos grandes navios de cruzeiro, é comum que a secção das câmaras esteja dividida em vários departamentos separados, relacionados com a organização do cruzeiro, relações públicas, entretenimento, restauração e bar, comércio, hotel, etc.

Entretanto, o decreto-lei n.º 206/2005, atualmente em vigor, estabelece no seu anexo III – artigo n.º 48: “Tem acesso à categoria de empregado de câmaras o indivíduo que satisfaça um dos seguintes requisitos:
a) Seja profissional de hotelaria titular de carteira profissional de empregado de mesa de qualquer categoria;
b) Possua experiência profissional no exercício de funções de empregado de câmaras a bordo de navios de bandeira estrangeira durante um período não inferior a 180 dias, comprovado por declaração da empresa armadora ou de seu representante.
Em ambos os casos referidos no número anterior, deverá o interessado ser titular de certificado de segurança básica ou de prova documental de ter frequentado curso de formação que inclua as matérias indicadas nas tabelas A-VI/1-1, A-VI/1-2, A-VI/1-3 e A-VI/1-4 do Código STCW.”

Em conclusão, embora o empregado de câmaras desempenhe várias funções, que encontram paralelismo no Sistema Nacional de Qualificações (SNQ), nomeadamente na área de hotelaria e restauração (área 811) pela via de ensino e formação, na legislação atual apenas o empregado de mesa pode realizar a Inscrição Marítima nesta categoria. No caso de possuir experiência profissional prévia como empregado de câmaras, mas apenas em navios de bandeira estrangeira, pode aceder igualmente realizar a Inscrição Marítima. 

Levantam-se várias questões: 
- Apenas os titulares de carteiras profissionais como empregados de mesa podem aceder à Inscrição Marítima? Abre-se aqui um enorme vazio, tendo em conta que as carteiras profissionais deixaram de ser emitidas em 2011, por força do decreto-lei n.º 92/2011, que estabeleceu o regime jurídico do sistema de regulação de acesso a profissões (SRAP); 
- Experiência apenas em navios de bandeira estrangeira? Porque não em navios de bandeira portuguesa do registo convencional, ou do segundo registo – o registo internacional de navios da Madeira, que tem neste momento quase 500 navios registados?

O Sistema Nacional de Qualificações (SNQ) e o Catálogo Nacional de Qualificações (CNQ)
O Sistema de Regulação de Acesso a Profissões (SRAP), foi criado com a publicação do decreto-lei n.º 92/2011, tendo por objetivo simplificar e eliminar barreiras no acesso a profissões e atividades profissionais. A publicação deste diploma veio alterar as normas de certificação e revogar, entre outras, a legislação relativa aos Certificados de Aptidão Profissional (CAP), emitidos ao abrigo do Sistema Nacional de Certificação Profissional (SNCP), e às Carteiras Profissionais.
Com a publicação do anterior, foi revogado o decreto-lei n.º 358/84, que estabelecia o regime jurídico das carteiras profissionais, pelo que o exercício das profissões que estava sujeito a este título deixou de o estar, neste contexto e a partir desta data. Assim, com a revogação do referido decreto, a ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho deixou, a 1 de agosto de 2011, de emitir Carteiras Profissionais. No que se refere à validade das Carteiras Profissionais já emitidas, a publicação do decreto-lei acima referido não veio alterar o valor inerente às mesmas, que continuam a atestar a posse de competências profissionais para o exercício de uma determinada profissão. 
Uma das implicações decorrentes da publicação do SRAP foi a revogação do Sistema Nacional de Certificação Profissional (SNCP), bem como da maior parte da legislação emitida ao abrigo do mesmo. Pelo exposto, os Certificados de Aptidão Profissional (CAP) deixaram de ser emitidos, exceto para as profissões de “motorista de táxi“ e “técnico de segurança e higiene no trabalho”. Assim, já não há lugar à emissão ou renovação de qualquer CAP, para além dos anteriormente mencionados.

Como se processa agora o acesso à certificação? De acordo com o decreto-lei n.º 37/2015: “Quando o acesso a determinada profissão regulamentada dependa da titularidade de qualificações previstas no CNQ, o interessado pode obtê-la por um dos seguintes meios:
a) Formação inserida no CNQ, de acordo com o regime previsto no decreto-lei n.º 396/2007;
b) Reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC) adquiridas noutras formações ou contextos pessoais e profissionais, nos termos do diploma previsto na alínea anterior.”
Ainda de acordo com o mesmo decreto-lei, o seu artigo 14.º explicita:
“Os titulares de certificado de aptidão profissional (CAP) ou de carteira profissional, válido em 26 de outubro de 2011 e que tenha correspondência com a qualificação prevista no CNQ, podem requerer a sua substituição por diploma de qualificações à ANQEP, I. P., desde que detenham a habilitação escolar exigida para o efeito. A substituição do CAP ou da carteira profissional pode ser requerida pelo respetivo titular junto da ANQEP, I. P., através do seu sítio na Internet, acessível através do balcão único dos serviços.”
O modelo do diploma relativo à substituição do CAP/carteira profissional e ainda do certificado profissional foram publicados, a 7 de outubro, com o despacho n.º 11239/2015. Estes documentos podem ser requeridos à Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional (ANQEP), através do e-mail cap@anqep.gov.pt, por titulares de um certificado de aptidão profissional (CAP) ou de carteira profissional com correspondência a uma qualificação prevista no Catálogo Nacional de Qualificações.

No que diz respeito a certificação ligada à área de hotelaria e restauração, o Catálogo Nacional de Qualificações (CNQ) inclui os seguintes títulos:
Nível 2 QNQ (3º ciclo do ensino básico)
Cozinheiro/a
Empregado/a de Andares
Empregado/a de Restaurante/Bar
Operador/a de Manutenção Hoteleira
Nível 4 QNQ (12º ano com estágio profissional de 6 meses)
Rececionista de Hotel    
Técnico/a de Cozinha/Pastelaria
Técnico/a de Restaurante/Bar
Nível 5 QNQ (Pós-secundário não superior)
Técnico/a Especialista em Gestão e Produção de Cozinha    
Técnico/a Especialista em Gestão e Produção de Pastelaria
Técnico/a Especialista em Gestão Hoteleira de Restauração e Bebidas
Técnico/a Especialista em Gestão Hoteleira e Alojamento

Quem é a entidade responsável pela Inscrição Marítima e emissão de Cédulas?
Mais uma vez se aplica o disposto no decreto-lei n.º 280/2001, de acordo com os seguintes artigos:
Artigo 4º - Pedido de inscrição marítima
A inscrição marítima é requerida aos órgãos locais do Sistema de Autoridade Marítima (SAM) competentes (Capitanias dos portos), devendo o requerente indicar os elementos a integrar no registo, devidamente comprovados por documento. Podem requerer a inscrição marítima os indivíduos maiores de 16 anos, de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional.
Artigo 5º - Registo da inscrição marítima
A inscrição marítima é registada pelo órgão local do SAM que a efetuar, em livro próprio denominado «Livro de Registo da Inscrição Marítima».
Artigo 8º - Suspensão da inscrição marítima
A inscrição marítima é suspensa sempre que o marítimo não exerça a atividade profissional de marítimo, pelo menos um ano, durante os últimos cinco anos.
Artigo 12º - Emissão das cédulas
Efetuadas as inscrições marítimas, devem ser emitidas a favor dos marítimos inscritos as respetivas cédulas. As cédulas são emitidas pelos órgãos locais do SAM dos portos (Capitanias) a que corresponderem as inscrições dos marítimos.
Artigo 16º - Prazo de validade das cédulas
As cédulas são válidas por 10 anos.

O valor a pagar pela Cédula de Inscrição Marítima varia entre os 18,56€ (entrega no prazo de 15 dias a 1 mês) e os 37,13€ (Urgente – entrega em 3 dias úteis).

Conclusão
Sendo a indústria do transporte marítimo uma indústria verdadeiramente global, torna-se fundamental que o legislador nacional desvalorize as vicissitudes, limitações e vontades da indústria do transporte marítimo nacional. Adicionalmente, que tenha em conta o bom trabalho desenvolvido no Sistema Nacional de Qualificações e que o integre numa futura revisão do Regulamento de Inscrição Marítima, permitindo iguais direitos a todos os portugueses que trabalham ou pretendem trabalhar em navios, sejam estes profissionais de operações marítimas (convés e máquina) ou das áreas de hotelaria, turismo, saúde e entretenimento, entre outras.

O legislador não pode hoje deixar de garantir que os marítimos portugueses, todos sem exceção, possam aceder à Inscrição Marítima e beneficiar do acesso à respetiva Cédula, concorrendo de igual forma em direitos e qualificações, com os marítimos de outros países. A economia do mar, de que tanto agora se fala, faz-se com pessoas, constituindo estas os melhores alicerces do ambicionado auspicioso futuro. Comecemos então por elas. Terminar a tragédia da cédula marítima será, sem dúvida, um bom e fundamental princípio.
 

Nota do autor: Este artigo foi publicado em 1 de março de 2017 e resulta de um trabalho de investigação desenvolvido nas semanas anteriores. Dado tratar-se de um tema em constante análise e evolução legislativa, se o encontrar e ler algures nos próximos anos, note que poderá então encontrar-se desatualizado.